Na pandemia, empresas precisam de um programa de compliance

06/05/2020

Leonardo Galvão Selva

 

A modernidade havia muito já respirava por aparelhos — paradoxalmente, antes mesmo da pandemia. As relações interpessoais já experimentavam altos níveis de futilidades, sem contar a falta de humanidade e empatia que se apresentava, cada vez mais, em diversos países emergentes e desenvolvidos. Entretanto, a crise humanitária e econômica provocada pela pandemia da Covid-19 promoverá no horizonte da evolução humana verdadeiras reestruturações das mais diversas relações, bem como será o motor propulsor de modificações nas instituições privadas e públicas — ou, pelo menos, assim deveria.

Aprioristicamente, precisamos nos deter à complexidade da sociedade moderna. Esta, como bem alcunhou Ulrich Beck, representa uma sociedade de risco. Todavia, para entender essa realidade da modernidade — mais precisamente da modernidade reflexiva, para sermos fiel à doutrina de Beck — é necessário que façamos um esforço histórico sobre a evolução da própria sociedade. Num primeiro momento, tinha-se que, na sociedade industrial, a noção de risco era, de todo modo, mais simplista. Existiam riscos, sim, porém estes eram sensorialmente perceptíveis e, majoritariamente, originavam-se pelo deficiente desenvolvimento tecnológico e cientifico da época, a exemplo das péssimas condições de trabalho e inexistência de saneamento básico — ainda presentes nas margens sociais.

Todavia, no percurso da humanidade os riscos foram se modificando sistematicamente. Eis que a sociedade industrial vai sendo, gradualmente, substituída pela sociedade de risco da era moderna — embora haja quem entenda por uma pós-modernidade. Um fator primordial da sociedade de risco é a globalização, em que as relações e os problemas ficaram mais complexos e intensos. Porém, aliada a todos os benefícios sentidos com os avanços advindos da globalização e da modernização cientifica e tecnológica, essa sociedade de risco não ficou imune aos seus efeitos negativos.

Nesse sentido, os riscos dessa modernidade, em oposição aos riscos da sociedade industrial, destacam-se pela sua globalidade, ou seja, são riscos que não ficam vinculados exclusivamente ao local de sua produção. A transnacionalidade, pois, é a sua característica distintiva, uma vez que os riscos reverberam para além de suas fronteiras [1]. Portanto, Beck entende que a sociedade de risco é produto do sucesso global da sociedade industrial, como um efeito colateral sistemático da modernização e da globalização característicos da modernidade [2].

Essa complexidade da era moderna e a noção de risco global trazem implicações também às instituições jurídicas. Na seara penal, por exemplo, são delineados novos contornos do injusto penal, principalmente no tocante ao Direito Penal Econômico. Ocorre que, notadamente, a globalização redundou numa maior complexidade da atividade empresarial, de modo que as empresas ficaram mais setorizadas, além da implantação de novas tecnologias e da expansão da produção de mercado, que atingiu escala mundial.

Desse modo, a atividade empresarial nessa sociedade moderna — especialmente da segunda modernidade ou modernidade reflexiva — passou a ser mais arriscada, principalmente pela quantidade de legislações e de normas de soft law surgidas mundo afora — e, certamente, no cenário nacional — que visam a combater a lavagem de dinheiro, a criminalidade ambiental e a corrupção. No mesmo caminho, a globalização afigurou-se como um marco para provocar a internacionalização do Direito [3], de maneira tal que o sistema corporativo atual não pode mais se restringir a respeitar as leis nacionais na sua atividade empresarial, mas, sobretudo, estar vigilante com as novidades legislativas estrangeiras, bem como estar atento às normativas dos órgãos nacionais, tal como o Bacen, o Coaf e a CVM.

Nesse cenário, portanto, inicia-se uma busca por prevenção e por controle de riscos na atividade empresarial. Assim, a figura do criminal compliance começa a ganhar mais espaços na área do Direito Penal [4]. Representando um conjunto de premissas éticas e de integridade que deve ser regulado pela pessoa jurídica com uma finalidade preventiva, o criminal compliance tem como fundamento o estabelecimento condutas no seio corporativo que estimulam a diminuição dos riscos da atividade empresarial ao adequá-la às normas de controle e repressão daquela atividade específica.

Dessa maneira, as pessoas jurídicas começaram a implantar programas de compliance, a fim de adequar sua atividade com os regramentos específicos de sua atividade empresarial, no intuito de controlar os riscos e evitar futuros imbróglios com a justiça.

Em tempos de pandemia, portanto, uma pessoa jurídica com um bom programa de criminal compliance anteriormente implementado poderá evitar os riscos inerentes a um momento de crise. Ocorre que, no período atual, regras são flexibilizadas com o objetivo de facilitar as tomadas de decisões do governo e das instituições privadas, podendo-se citar, a título de exemplo, toda sorte de dispensas de licitações para o enfrentamento da pandemia, bem como as diversas manobras protagonizados pelas empresas para manter sua atividade em funcionamento. Contudo, apesar de toda flexibilização — inclusive com respaldo em lei [5] —, trata-se de uma situação momentânea, sendo certo, portanto, que na medida em que o cenário for retornando à normalidade, a tendência será uma fiscalização mais forte por parte das instituições de controle, principalmente pelo Ministério Público e pela Corregedoria, dos fatos ocorridos durante a crise.

Desse modo, torna-se de extrema importância para a saúde da pessoa jurídica o pleno funcionamento do programa de criminal compliance, com o detalhamento de todo o racional das tomadas de decisões da empresa no período de pandemia, a fim de produzir verdadeiras provas positivas a serem apresentadas às instituições de controle que porventura venham a questionar a idoneidade dos atos empresariais durante a crise da Covid-19.

Assim, nesse aspecto, é preciso estar atento ao legado que a pandemia irá deixar em cada empresa, a fim de incentivá-las a adoção de um programa de compliance na sua gestão, com o propósito de prevenir-se de eventuais embaraços com a Justiça, revestindo sua atividade empresarial com ética e integridade. Portanto, a prevenção dos riscos, principalmente na sociedade moderna, mostra-se indispensável para as grandes empresas que pensam a longo prazo, pois a sociedade continuará seu processo natural de evolução e, assim, novos riscos, cada vez mais complexos, surgirão, devendo a pessoa jurídica estar preparada e acautelada quanto à produção de eventuais riscos e suas consequências legais.

Via ConJur

[1] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução: Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 26.

[2] Ibidem, p. 33.

[3] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 39.

[4] Apesar do tema ter sido tratado, ainda que de forma embrionária, com a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei n. 9.613/98), foi com a Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846/13) que o instituto ganhou força no cenário brasileiro, notadamente ao dispor sobre a responsabilização administrativa e civil da pessoa jurídica pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

[5]  A exemplo da Lei n. 13.979/20 (Lei do Coronavírus).